Um ditado indiano diz que a gente é aquilo que come. A alimentação sempre ocupou lugar de destaque desde as sociedades milenares. As pessoas comiam para satisfazer as necessidades do corpo, mas também da mente. A comida também se encarregou de perpetuar culturas de povos, passando receitas e costumes de geração para geração, até os dias de hoje. No entanto, se a gente é o que come, não temos muito o que comemorar. Em nome da correria do dia-a-dia, a alimentação variada de antigamente, com legumes, verduras e frutas, tudo cozido e até mesmo plantado em casa, deu lugar a pães, bolachas, comidas instantâneas e enlatados.
O resultado dos novos maus hábitos foi comprovado em agosto de 2010. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou pesquisa em que mostra que a obesidade já é uma epidemia no país. Desde a década de 70, o déficit de alimentação diminuiu, mas o excesso e a obesidade estouraram. Tanto que o IBGE estima que, se for mantido o ritmo de crescimento de pessoas acima do peso, em apenas 10 anos o Brasil terá se igualado aos Estados Unidos.
Ou seja, o brasileiro está comendo mais, no entanto, com menos qualidade, como explica a nutricionista Regina Miranda, presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (Consea). “Há exemplo do trigo, batata, derivados de trigo como pão e macarrão, são dominante numa dieta diária. Isso, sem sombra de dúvida, empobreceu a alimentação”.
A má alimentação não se restringe apenas a ter uma dieta empobrecida e com pouca variedade por causa da dita falta de tempo. Também é consequência de um novo padrão alimentar que vem sendo imposto com a industrialização dos alimentos. As pessoas têm comida barata à disposição, mas com pouco valor nutritivo, carregado de açúcar, sal, conservantes e gordura hidrogenada. A mudança na alimentação, embora atinja toda a sociedade, é mais perversa entre os mais pobres, analisa Regina.
“O que faz com que as pessoas muito pobres, que têm uma renda baixa, acabam mais destes alimentos porque são mais baratos. Alimentam maior número de pessoas durante o mês. O resultado disso tudo uma humanidade obesa. É um sistema que obesifica as pessoas, que adoecem muito de doenças relacionadas a maus hábitos alimentares como diabetes, pressão alta, cardiopatia”. Neste novo padrão, a comida deixou de ser um alimento e passou a ser tratada como uma mercadoria, vendida aos consumidores, à população. Quem nunca escolheu, no supermercado, a laranja maior, mais lustrosa, a mais bonita? São essas as características que definem o valor nutricional dos alimentos? Há prateiras específicas até mesmo para as crianças, com bolachas e salgadinhos com carinhas e diversos sabores.
Para a nutricionista Regina Miranda, não é a aparência o que deve contar na hora de optarmos por uma alimentação mais saudável, e sim a sua essência. “Não comemos mais alimentos, comemos mercadoria. Aquilo que vou comer estão embutidos outros valores em troca que não são necessariamente importantes para a minha saúde. Tem valor como uma mercadoria que tem que gerar lucro, tem que ter tempo de prateleira, estar maquiada”.
Muitas vezes, a comida mais bonita e que pode parecer mais apetitosa aos olhos não é necessariamente a melhor para a nossa saúde. Isso porque para deixarem o alimento com essa “boa” aparência, os agricultores usaram agrotóxicos na hora de plantar e produzir. Em 2009, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos e se tornou o líder mundial no uso de veneno agrícola. Foram consumidos 1 bilhão de litros por ano no país. É como se cada brasileiro consumisse, em média, 5 litros de veneno por ano.
A pesquisadora Rosany Bochner coordena o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (SINITOX). Ligado à Fundação Oswaldo Cruz, o sistema centraliza e divulga os casos de envenenamento e intoxicação registrados na rede nacional. Os casos mais registrados pelo sistema são de efeito agudo, que ocorre quando a pessoa apresenta reações logo após a intoxicação. No entanto, os casos crônicos, em que os efeitos aparecem após a exposição por um longo período aos agrotóxicos, são em grande maioria e não se restringem mais aos agricultores, que lidam diretamente com o veneno. De acordo com Rosany, atinge toda a população, apesar das dificuldades para comprovar que doenças que hoje afetam a população, como câncer, estão relacionadas aos venenos agrícolas.
“Há 10 anos, com certeza não tinha o consumo que se tem hoje. E se você olhar em termos de câncer e tudo mais, essas doenças aumentaram bastante. Se olhar o mapa das doenças hoje, vê que algumas diminuíram com saneamento, vacinas e com algumas coisas que foram feitas. E outras que vêm aumentando. Até porque a vida média aumentou. Mas a questão do câncer chama muito a atenção. Não sei se é uma coincidência, mas se ouve muito”.
Ainda há os problemas ambientais, como lembra o integrante da coordenação nacional da Via Campesina, João Pedro Stedile.
“Afetam o meio ambiente porque destroem os micronutrientes do solo, contaminam a água do lençol freático, evaporam e voltam com as chuvas. E finalmente, se incorporam com os alimentos e as pessoas que consomem estes alimentos acabam ingerindo pequenas doses permanentes de veneno que vão se acumulando no seu organismo e que afeta, em primeiro lugar, o sistema neurológico e, em segundo lugar pode degenerar as células e se transformar em câncer”.
Em 2009, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) constatou que mais de 64% das amostras de pimentão analisadas pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos apontam quantidade de resíduo tóxico acima do permitido. A Anvisa também encontrou , em todos os alimentos analisados, resíduos de agrotóxicos que não são permitidos no Brasil justamente por serem altamente prejudiciais.
A pesquisadora Rosany Bochner, da Fundação Oswaldo Cruz, desmistifica a ideia de que a quantidade de agrotóxicos utilizada é proporcional à escala de grãos produzidos no país.
“Em várias coisas ele [Brasil] não é o maior produtor. É uma ilusão achar que o Brasil é o maior produtor de grãos e que precisaria ser o maior consumidor [de agrotóxicos]. E o Brasil passou de segundo para primeiro, não se iluda, foi exatamente quando os outros países proibiram o uso de alguns produtos e nós não. Logicamente que se tinha uma oferta muito grande de produtos que vieram para cá. Com certeza vieram com preço menor, que se começou a consumir mais”.
João Pedro Stedile responsabiliza o agronegócio e as grandes empresas por impor esse modo de produção, baseado no uso de venenos químicos. Ele sugere, por exemplo, a indenização das pessoas que sofreram com os efeitos dos agrotóxicos. “Espero que algum dia, inclusive, tenhamos leis suficientes não só para proibir o uso do veneno, mas para exigir que estas empresas indenizem as famílias que tenham pacientes com enfermidades decorrentes dos venenos agrícolas”.
Por Raquel Casiraghi - Radioagência NP
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