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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Por uma grande campanha a favor de um transporte consciente

Não há como discordar de que há uma falência da mobilidade nas cidades e que há forte necessidade de políticas públicas para corrigir as falhas. Mas isso só ocorrerá se houver vontade política de colocar novas políticas públicas em prática. O grande problema é que nenhum governante vai ousar colocar fortes limitações ao uso de automóveis, ao menos tão fortes a ponto de realmente melhorar ou ao menos não piorar a mobilidade urbana, até que se tenha resolvido significativamente a questão dos transportes públicos.

Para que os governantes tivessem a coragem de colocar tais limitações, no momento em que a classe C está animadamente comprando seus carros, seria preciso um grande movimento popular. Tal movimento é improvável, dado que:

a) os transportes públicos são, de um modo geral, caros, de má qualidade ou insuficientes (caso do metrô);

b) a classe C sente que “chegou a sua vez de consumir”, e é difícil negar o aparente privilégio da propriedade de um veículo para uso individual;

Nesse sentido, seria preciso um movimento de conscientização pública para que todos percebam a interdependência existente entre a ação de cada um e o impacto sobre todos. Este é tipicamente um movimento a favor do consumo consciente dos transportes, olhando para os seus impactos individuais, sociais e ambientais, e buscando minimizar os negativos e maximizar os positivos.

Para isso, é necessária uma grande campanha da sociedade civil e da mídia para que as pessoas se deem conta da armadilha contida na propriedade individual de automóveis, se não houver uma consciência de que o uso do automóvel deve se dar em certas circunstâncias e não em outras. É preciso que as pessoas se deem conta de que, na medida em que o suposto bem-estar individual é aumentado pela compra do carro, tal privilégio levado ao coletivo da sociedade torna-se na verdade um grande ônus para cada um e para a sociedade como um todo. Somente assim, mais e mais pessoas irão se dispor a algum movimento em favor de melhores soluções para a mobilidade urbana e pressionarão os governantes para que tais soluções façam parte das políticas públicas.

Ou, no mínimo, para que a população se disponha a estudar, de forma colaborativa junto com as empresas onde trabalham, formas de reduzir o trânsito nos momentos de pico, buscando também mobilizar essas empresas na direção de pressionar os governantes por soluções para a melhor mobilidade urbana.

Certamente, a solução virá por um mosaico de ações, que irão da ciclovia que viabilize um maior uso da bicicleta para curtas distâncias, até as soluções mais abrangentes que necessariamente terão a ver com a implantação simultânea de algumas ações:

a) Algum tipo de pedágio urbano, como, por exemplo, eu acabo de ver em Shanghai, onde não basta comprar um carro, é preciso comprar a licença para poder usar o carro. A licença atualmente custa o preço de um carro popular, isto é, cerca de US$ 10 mil (R$ 17 mil). Para driblar a regra, as pessoas começaram a licenciar seus carros nas cidades vizinhas. Shanghai então definiu uma nova regra: só os carros licenciados em Shanghai podem usar a freeway em horários de pico. E, em caso de uso não autorizado, os carros serão multados e terão que pagar um valor muito elevado;

b) aumentar o número de vagões nos trens de metrô nos horários de pico, ou aumentar o número de composições completas;

c) aumentar o número de faixas exclusivas para ônibus, que, claramente, são uma solução interessante, especialmente se houver duas faixas, uma de rolagem e outra de embarque/desembarque (o que causará problemas para o tráfego de carros, incentivando ainda mais o uso dos ônibus);

d) aumento do IPVA de forma proporcional ao uso mensal, ou seja, número de quilômetros rodados (é possível instalar chips nos carros e saber o número de quilômetros rodados por mês em certas regiões da cidade, de forma a cobrar o IPVA de forma personalizada);

e) re-introdução do metrô de superfície (antigo bonde), que tem um custo de implantação e uma velocidade de implantação muitíssimo menores que o metrô subterrâneo; naturalmente, isto vai causar dificuldades para o transporte individual, o que é um incentivo na direção correta;

f) aumento na velocidade de expansão nas linhas de metrô subterrâneo. Para me referir novamente ao que se passa na China, em Hangzhou, uma cidade que cresce aceleradamente em população, serão construídos 28 quilômetros de metrô, em apenas quatro anos;

g) proibição de estacionamento nas ruas de São Paulo, dando um prazo para que a população se adapte, e sendo esse prazo menor nas regiões mais críticas (como já ocorre no centro da cidade); a proibição de estacionamento nas ruas, deixará as ruas livres para serem ocupadas por ônibus, por faixas exclusivas de ônibus e por faixas exclusivas de bondes;

h) uso de linhas de trens que estão ociosas em pontos importantes da cidade, como ocorre em São Paulo, para instalação de linhas emergenciais de bondes, ao mesmo tempo que se use as áreas ociosas ao lado de linhas de trens desativadas para construção de moradias populares, de modo a reduzir o deslocamento daquela parte das populações que moram em bairros dormitórios e atravessam a cidade para ir e voltar ao trabalho;

i) implantação de um software de “troca de emprego” para pessoas em funções intercambiáveis (alguns tipos de tarefas de escritório, alguns tipos de funções em obras civis, alguns tipos de funções em chão de fábrica etc.);

j) incentivo para empresas de alto uso de mão-de-obra (como telemarketing) para a ocupação de galpões desocupados nas periferias das grandes cidades, como é o caso de São Paulo;

k) implantação de uma Secretaria do Tempo nas grandes metrópoles, cujo foco deve ser a análise de alternativas para minimizar o gasto exagerado de tempo em funções não produtivas ou não relacionadas ao contato social, como é o caso dos engarrafamentos de trânsito;

Várias dessas medidas serão impopulares no curto prazo, mas trarão enorme alívio no trânsito a médio prazo, tornando-se bastante populares, visto que podem alterar significativamente a qualidade da mobilidade urbana nas grandes cidades, como São Paulo. Mas são medidas que serão tão mais fáceis de serem implantadas pelo poder público quanto mais consciente a população estiver a respeito da importância do uso compartilhado do transporte e não do individual.

O Akatu trabalha a questão individual como forma de chegar à coletiva. Consumo consciente da mobilidade, portanto, significa optar pela alternativa já existente ou pressionar para que alternativas venham a existir. Pressionar é também uma ação do consumidor consciente, que quer viabilizar o transporte solidário, público, compartilhado. Sem a consciência de que a melhor solução coletiva é também a melhor solução individual, o público em geral quer somente o transporte individual, que supostamente traria ganhos de bem estar.

No entanto, não haverá solução sem uma campanha forte de consumo consciente, que leve as pessoas a fazerem melhores escolhas de transporte ou a querer que tais alternativas estejam disponíveis e pressionem o poder público para que tais escolhas sejam viabilizadas.

*Helio Mattar, Ph.D., Diretor Presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente

http://www.akatu.org.br

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